Reprodução assistida e bioética: o caso do doador TP53

Reprodução assistida e bioética no uso de material genético humano

A reprodução assistida e bioética voltaram ao centro do debate jurídico internacional após a divulgação de um caso ocorrido na Europa envolvendo um doador de gametas portador de mutação grave no gene TP53, associada à síndrome de Li-Fraumeni. A alteração genética, ligada a um risco extremamente elevado de desenvolvimento de câncer, especialmente infantil, foi transmitida a dezenas de crianças concebidas por fertilização in vitro em diferentes países europeus. A gravidade do episódio evidencia que falhas regulatórias e técnicas podem gerar impactos profundos, duradouros e, sobretudo, irreversíveis.

A mutação genética presente no material reprodutivo do doador elevou significativamente o risco de câncer ao longo da vida das crianças concebidas, com estimativas que chegam a até 90%. O problema, que em condições normais poderia ser restrito a um núcleo familiar, assumiu proporções coletivas ao se multiplicar por dezenas de descendentes, espalhados geograficamente e submetidos a sistemas de saúde distintos.

O risco genético ampliado na reprodução assistida

Quando técnicas de reprodução assistida utilizam de forma reiterada o material genético de um único doador, qualquer falha na triagem pode se propagar de maneira exponencial. No caso europeu, o uso excessivo de um mesmo doador demonstrou que o risco não é apenas individual, mas populacional. Crianças geradas nessas circunstâncias passam a demandar acompanhamento médico permanente, exames preventivos frequentes e vigilância clínica rigorosa, o que impacta diretamente sua qualidade de vida e seus projetos futuros, inclusive reprodutivos.

Além disso, os reflexos não se limitam às famílias diretamente atingidas. Sistemas públicos e privados de saúde são pressionados por custos adicionais que poderiam ser evitados com protocolos mais rigorosos de controle, limitação e rastreabilidade do material genético utilizado.

Falhas regulatórias e lacunas normativas

Sob a perspectiva da reprodução assistida e bioética, o caso revela falhas graves de regulação e fiscalização. A inexistência de limites internacionais uniformes para o número de nascimentos por doador, aliada à fragmentação legislativa entre países, cria um cenário de insegurança jurídica e sanitária. O chamado “turismo reprodutivo”, em que pacientes buscam países com regras mais flexíveis, amplia ainda mais o problema e dificulta o controle efetivo dos riscos envolvidos.

Mesmo em países com normas avançadas, a ausência de mecanismos integrados de registro e rastreamento permite que um único doador gere dezenas ou centenas de descendentes sem que haja um controle centralizado e eficiente.

Responsabilidade civil das clínicas e dever de cuidado ampliado

Do ponto de vista do direito médico, a responsabilidade civil das clínicas de reprodução assistida e dos bancos de sêmen é central nesse debate. A prestação do serviço não se limita à coleta e ao armazenamento do material genético, mas envolve seleção criteriosa, triagem adequada, gestão da cadeia de custódia, controle do número de utilizações e, sobretudo, informação clara e completa às pacientes.

A ausência ou insuficiência dessas medidas compromete o consentimento informado e viola a autonomia reprodutiva das mulheres que se submetem à fertilização in vitro sem conhecer a real dimensão dos riscos envolvidos. Mesmo quando determinada mutação não é detectável pelos exames disponíveis, permanece o dever de informar essa limitação técnica e de adotar estratégias de mitigação de danos, como a restrição do uso repetido do material genético de um único doador.

A lógica da segurança legitimamente esperada, consagrada no direito do consumidor, aplica-se aqui por analogia. O serviço de reprodução assistida deve atender a um padrão técnico elevado, compatível com a relevância do bem jurídico tutelado: a vida, a saúde e a integridade genética das crianças geradas.

Leia também: Direitos dos pais na emergência pediátrica: o que a lei garante

Reprodução assistida e bioética sob a ótica bioética

Sob o prisma bioético, o caso afronta princípios fundamentais como a não maleficência, a beneficência e a justiça. Não se trata de exigir a eliminação absoluta de riscos — o que é cientificamente impossível —, mas de distinguir riscos inevitáveis daqueles que são evitáveis ou inaceitáveis, especialmente quando se trata de material genético humano transmissível entre gerações.

A autonomia das pacientes é comprometida quando informações essenciais são omitidas ou minimizadas, e a justiça distributiva é violada quando riscos graves são concentrados em grupos específicos sem transparência ou possibilidade real de escolha esclarecida.

O cenário brasileiro e os desafios futuros

No Brasil, normas do Conselho Federal de Medicina estabelecem limites para o número de nascimentos por doador, buscando reduzir riscos genéticos e sociais. No entanto, persistem lacunas quanto à fiscalização, à definição territorial desses limites e à integração de dados entre clínicas e bancos de material genético.

O caso europeu funciona como um alerta global. A reprodução assistida é instrumento legítimo de concretização do direito à família, mas não pode ser dissociada da responsabilidade jurídica e bioética. A proteção da criança, da saúde pública e da dignidade da pessoa humana deve prevalecer sobre interesses econômicos ou operacionais.

A reprodução assistida e bioética exigem uma abordagem integrada, com protocolos rigorosos de triagem genética, controle efetivo do uso de material genético, transparência informacional e cooperação regulatória entre países. Apenas assim será possível reduzir riscos, preservar a confiança no avanço científico e garantir que a técnica cumpra sua finalidade maior: promover vida com dignidade, segurança e responsabilidade intergeracional.

Fonte: Migalhas

Tags: reprodução assistida, bioética, direito médico, responsabilidade civil, fertilização in vitro, bancos de sêmen, genética e direito, saúde reprodutiva, direitos da criança

Compartilhe nas redes

Continue lendo