“Barriga solidária”: um diálogo entre Direito, Medicina e Psicologia

Inicialmente, cumpre esclarecer que um diálogo entre Medicina, Direito e Psicologia deve se pautar, por óbvio, pela mais absoluta ética

E, por falar em ética, muito embora esse não seja o objeto fulcral deste artigo, mas vertente elementar a norteá-lo, vamos repisar aqui um importante conceito.

Com efeito, seria possível citar importantes e marcantes filósofos do passado, tais como Aristóteles e Kant, mas preferimos este conceito do filósofo brasileiro contemporâneo, Mario Sergio Cortella, que muito nos atende, ao conceituar ética como “o conjunto de valores e princípios que usamos para responder a três grandes questões da vida: (1) quero?; (2) devo?; (3) posso? Nem tudo que eu quero eu posso; nem tudo que eu posso eu devo; e nem tudo que eu devo eu quero. Você tem paz de espírito quando aquilo que você quer é ao mesmo tempo o que você pode e o que você deve” (sic).

As perguntas que o eminente filósofo nos sugere a refletir serão por nós respondidas in fine.

Tema relativamente novo para o Direito brasileiro e, notadamente para o Direito de Família, é a denominada gestação por substituição, vulgarmente e corriqueiramente denominada “barriga solidária”. Saliente-se, neste passo, que existem outra nomenclaturas utilizadas, tais como “útero de substituição”, “doação temporária do útero”, “cessão de útero”. Jamais barriga de aluguel! Isto porque o Direito brasileiro ainda repudia esta última, haja vista a possível existência de lucratividade, não havendo, por ora, qualquer previsão normativa (a barriga de aluguel é permitida em outros países, tais como EUA, Índia, Tailândia, Ucrânica e México, que contratam e pagam para tanto). No Brasil, há proibição expressa nesse sentido, ocasião em que as inúmeras discussões em nosso território ocorrem, ainda, apenas no âmbito acadêmico, eis que proibido qualquer intento de lucratividade.

Nesta altura, o leitor deve estar se perguntando, o que vem a ser a “barriga solidária”?

Trata-se de uma gestação em que um casal (obviamente com problemas para gestação) procede à doação/cessão dos gametas que serão fecundados in vitro e implantados no útero de uma mulher, a qual os recebe, de forma voluntária, que por sua vez irá gerar o bebê em seu útero.

Consigne-se que a mulher em que será implantado o material genético do casal não terá, em caso de fecundação, gestação e nascimento, quaisquer direitos sobre o embrião, nascituro e, notadamente, sobre o bebê, seja no âmbito das relações jurídicas inerentes ao parentesco, bem como todos os direitos decorrentes, tais como filiação (nem biológica e tampouco social), eventuais direitos de guarda ou visitas, alimentos, sucessão etc.

Se para aquela que receberá o material nenhum vínculo cria, de outra banda, os vínculos inerentes a tais institutos jurídicos do Direito de Família e Sucessões, acima referenciados, existirão entre o casal que cedeu/doou o material genético e o “ser” concebido.

Dessa forma, numa terminologia jurídica mais apropriada, denomina-se doadora a mulher que, voluntariamente, deseja gestar por substituição, e donatários o casal que fornece o material genético.

Mas dissemos acima que o material genético é implantado no útero de uma mulher. Indaga-se: qualquer mulher? A resposta é negativa.

A matéria é regulada em atos normativos, a saber.

O Conselho Federal de Medicina vem editando, para tanto, algumas resoluções, e a que se encontra em vigor, atualmente, é a 2.121/2015, que “adota as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida — sempre em defesa do aperfeiçoamento das práticas e da observância aos princípios éticos e bioéticos que ajudarão a trazer maior segurança e eficácia a tratamentos e procedimentos médicos tornando-se o dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos brasileiros e revogando a Resolução CFM nº 2.013/13” (sic).

No intuito de conferir segurança jurídica às técnicas de reprodução assistida (RA), o Conselho Nacional de Justiça, por sua vez, em homenagem ao artigo 227, parágrafo 6º da Constituição Federal, editou o Provimento 52/2016, que “dispõe sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida” (sic), ocasião em que rendemos, desde já, nossas homenagens à ministra Nancy Andrighi, então corregedora, haja vista que nada pode ser considerado mais digno do que referido provimento.

Foi, por assim dizer, um importantíssimo passo, pois, até 15/3/2016, o registro da criança só era feito por meio de decisão judicial, situação essa que demanda tempo, constrangimento e atentava contra o princípio da dignidade da pessoa humana. A partir de então, os cartórios devem registrar, haja vista o comando normativo existente. Outra importante conquista para os casos de gestação por substituição foi o fato de que, ainda que um hospital venha a lançar o nome da gestante na Declaração de Nascido Vivo (DNV), este não deve constar na certidão de nascimento.

Com efeito, extrai-se da resolução do Conselho Federal de Medicina e do provimento do Conselho Nacional de Justiça importantes normas que devem ser observadas pelos envolvidos e profissionais do Direito:

a) as doadoras do útero devem pertencer à família de um dos parceiros, em parentesco consanguíneo até o 4º grau (lembrando aqui: 1º grau – mãe; 2º grau – irmã/avó; 3º grau – tia; 4º grau – prima);

b) ato deve ser voluntário, afastando-se a lucratividade ou, por óbvio, eventuais vícios de vontade;

c) é mister preparar uma série de documentos para que não surja problemas no futuro, a saber:

“§ 1º Nas hipóteses de doação voluntária de gametas ou de gestação por substituição, deverão ser também apresentados:

I – termo de consentimento prévio, por instrumento público, do doador ou doadora, autorizando, expressamente, que o registro de nascimento da criança a ser concebida se dê em nome de outrem;

II – termo de aprovação prévia, por instrumento público, do cônjuge ou de quem convive em união estável com o doador ou doadora, autorizando, expressamente, a realização do procedimento de reprodução assistida.

III – termo de consentimento, por instrumento público, do cônjuge ou do companheiro da beneficiária ou receptora da reprodução assistida, autorizando expressamente a realização do procedimento” (sic).

Por derradeiro, salientamos que, além do médico e do advogado, mister a participação, neste planejamento/procedimento, de um psicólogo, que deverá acompanhar a doadora do útero e os donatários.

A bem da verdade, o advogado deve ser cauteloso, orientando sempre de maneira proficiente e criteriosa.

Ao receber em seu escritório o casal e a voluntária da gestação por substituição, tome a devida cautela e, primeiramente, avalie se não se trata de “acordo financeiro/existência de lucratividade” e, caso positivo, oriente-os para a não realização, ante a expressa vedação legal.

1) Caso seja um ato de amor e, portanto, voluntário, certifique-se da existência de laudos médicos atestando a impossibilidade de uma gravidez e os motivos que levaram o médico a sugerir tal procedimento.

2) Sugira que a doadora e os donatários procurem um psicólogo para compreender todo o processo.

3) Caso tudo esteja na mais perfeita ordem, solicite certidão de casamento/nascimento/escritura de união estável, laudos médicos e psicológicos.

4) Em atendimento ao parágrafo 1º, artigo 2º, do provimento do CNJ, elaborar um ata notarial cujo ato jurídico será o “consentimento prévio para registro de nascimento em nome de outrem”, pela opção de gestação por substituição (“barriga solidária”). Na aludida ata notarial, deverá constar as declarações da doadora (se casada ou unida estavelmente, acompanhada do cônjuge ou convivente) e da donatária (do mesmo modo, acompanhada do cônjuge ou convivente), sendo certo que tais declarações deverão restringir à ciência inequívoca de que o nascituro(s)/filho(s) concebido(s) terá(ão) o reconhecimento para com os donatários (aqueles que doaram/cederam o material genético). É dizer, mais especificamente, que todos os direitos e deveres inerentes à relação paterno/materno/filial e, por assim dizer, do Direito de Família e Sucessões (filiação/alimentos/guarda/direito de convivência/sucessão etc.) não poderão, em hipótese nenhuma, guardarem qualquer relação com a doadora (“barriga solidária”), eis que desprovido de qualquer suporte jurídico.

Mas lembram-se quando dissemos, no início deste artigo, que a ética deve permear não só o estudo, como também o caso concreto? Ademais, nos prontificamos a responder três importantes reflexões do eminente filósofo Mario Sergio Cortella, que nos levariam, em tese, a classificar algo como ético.

Vamos lá.

Primeira pergunta: “quero”? Resposta: o desejo do nosso cliente é o nosso desejo.

Segunda pergunta: “devo”? Resposta: em se tratando de relação advogado/cliente, deve-se, sempre, buscar a satisfação do interesse do seu representado.

Terceira pergunta e, acrescento eu, a principal: “posso”? Resposta: se estiveres diante de um caso em que haja (i) ausência de lucratividade entre os envolvidos; (ii) laudo médico conclusivo pela possibilidade da gestação por substituição; (iii) laudo psicológico favorável; (iv) parentesco em 4º grau entre doadora e donatária: (v) enfim, obediência aos comandos da resolução do Conselho Federal de Medicina e do provimento do Conselho Nacional de Justiça, bem como aos preceitos do ordenamento jurídico aplicáveis à espécie, são o bastante para uma conclusão positiva ética.

Por derradeiro, parafraseando o aludido filósofo: “Você tem paz de espírito quando aquilo que você quer é ao mesmo tempo o que você pode e o que você deve”.

Por fim, a “barriga solidária” deverá ser planejada por meio de um diálogo entre três ciências: Direito, Medicina e Psicologia, acompanhada pari passu pela mais absoluta ética.

Por: Ricardo Politano é sócio do escritório Politano Advogados Associados, especialista em Direito de Família e Sucessões, pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil e membro da Comissão de Ética da OAB e da Comissão de Prerrogativas (15ª Região).

Fonte: Primeira Edição

 

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